Léa Lucas Garcia de Aguiar (1933-2023) foi uma atriz carioca com dezenas de trabalhos no teatro, cinema e televisão. Em 70 anos de carreira, valorizou o protagonismo negro, bem como a luta antirracista e a denúncia da situação do negro na sociedade brasileira. Estreou como atriz em 1952 com o espetáculo Rapsódia Negra, de Abdias do Nascimento, com o Teatro Experimental do Negro (TEN). Com o grupo, atuou em peças de Eugene O`Neill, Lúcio Cardoso e Abdias do Nascimento, entre outros dramaturgos. Em 1956, destacou-se no espetáculo Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, estreado no Teatro Municipal do RJ, com cenários de Oscar Niemeyer. A adaptação cinematográfica dessa peça, por Marcel Camus em 1959 e intitulada Orfeu Negro, constituiu-se na primeira experiência de Léa no cinema, tornando-a conhecida pela indicação a melhor atriz no Festival de Cannes. Em 1963, atua em Ganga Zumba, primeiro filme de Cacá Diegues. Entre dezenas de espetáculos teatrais, foi dirigida, a partir dos anos 1970, por nomes como Sérgio Britto, Bibi Ferreira e Flávio Rangel, marcando presença no debate antirracista ao atuar em montagens como A missa dos quilombos, com direção de João das Neves e música de Milton Nascimento em 1988; Anjo Negro, de Nelson Rodrigues, dirigido por Ulysses Cruz em 1994; e em obras críticas à sociedade capitalista, como As pequenas raposas, de Lillian Hellman, com direção de Naum Alves de Souza em 2004. Participou também de inúmeras novelas, começando no Grande Teatro da TV Tupi na década de 1950 e estreando na Rede Globo em 1970, no elenco de Assim na Terra como no céu, de Dias Gomes. Seguiram-se inúmeras outras, sendo um de seus trabalhos mais célebres Escrava Isaura, de fama internacional. Entre seus filmes, destaca-se Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, com elenco negro, pelo qual compartilhou com Ruth de Souza, em 2004, o prêmio de melhor atriz no Festival de Gramado. Em meio aos trabalhos de atriz, Léa foi Conselheira de Cultura do Estado do Rio de Janeiro (1991-2001) e diretora artística do Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (SATED), eleita em 2010. Em 2023, ano em que foi laureada com o prêmio Shell especial, faleceu em Gramado (RS), em 15 de agosto. Na ocasião, iria receber o Troféu Oscarito, concedido pelo Festival de Gramado a profissionais de destaque no cinema nacional.

Em 1957, foi convidada junto de seu então marido, Abdias do Nascimento, para integrar o elenco de Perdoa-me por me traíres, de Nelson Rodrigues, interpretando o papel da Enfermeira. Léa esteve, assim, junto do dramaturgo na única peça em que ele atuou, estreada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 19 de junho daquele ano. O relato da experiência de Léa Garcia pode ser conferido na entrevista a seguir.

Do texto

Classificada como um das tragédias cariocas de Nelson Rodrigues, Perdoa-me por me traíres coloca em cena Glorinha, colegial órfã levada por sua amiga Nair a um prostíbulo para se entregar a um deputado. Ao descobrir a transgressão, seu tio Raul, que a criara de forma rigorosa, traz à tona segredos e tragédias familiares. Por meio de flashbacks, é então revelado o verdadeiro fim do casamento entre Gilberto e Judite, pais da menina

Da montagem

No final de 1956, Nelson Rodrigues concluiu a escrita de sua nona peça teatral: Perdoa-me por me traíres. Tão logo começa a ser ensaiada, no início de 1957, a imprensa repercute fortemente o trabalho, que misturaria no elenco atores brancos e negros em papéis não necessariamente óbvios. Algumas polêmicas, antes da estreia, já se dão nos jornais e revistas cariocas e nacionais: a divulgação de uma nova visão sobre a traição (expressa no próprio título do espetáculo), muito se fala sobre a violenta cena do aborto, além da participação de Nelson Rodrigues como ator na montagem, na pele do perverso tio Raul. As atenções se voltam todas para ele, que alimentava a ideia de que aquela seria sua peça mais violenta. Em 19 de junho de 1957, sob direção de Léo Jusi e com produção de Gláucio Gil, que também compunha o elenco, Perdoa-me por me traíres estreia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e esta primeira apresentação é uma das mais tumultuadas da história das montagens de Nelson Rodrigues. Um vereador chega a sacar uma arma enquanto metade da plateia ovacionava a peça e outra vaiava e xingava o autor. Ao final de uma breve temporada, a produção tenta levar o espetáculo para São Paulo, com a substituição de Nelson Rodrigues pelo renomado ator Jaime Costa. Entretanto, a censura estadual proíbe a montagem, o que leva Nelson a São Paulo, onde se encontra com o governador Jânio Quadros, que promete a liberação do texto. Entretanto, pressionado por um extenso abaixo assinado de senhoras católicas da cidade, Jânio acaba decidindo-se pela interdição do espetáculo, o que gera uma enorme polêmica na imprensa. Nelson aproveita o novo tumulto e reestreia Perdoa-me por me traíres na Praça Tiradentes do Rio de Janeiro, no Teatro Carlos Gomes. Numa nova temporada carioca, num grande teatro da cidade, ele promove a participação do público na grande história daquela montagem, entregando ao final das apresentações uma cédula para cada espectador, que deveria votar se o espetáculo deveria ser exibido ou não. Resultados parciais dessa votação eram divulgados em jornais, alimentando ainda mais a curiosidade do público, que compareceu em massa ao teatro. Após a temporada ser prorrogada algumas vezes, a peça ainda é exibida no Teatro São Jorge (atual Teatro Cacilda Becker, no Rio) e no Teatro da Tijuca, concluindo a passagem por quatro casas de espetáculo e podendo ser considerada um dos maiores sucessos da carreira de Nelson Rodrigues.

⸺ Texto

Nelson Rodrigues

⸺ Direção

Leo Jusi

⸺ Produção

Gláucio Gil

⸺ Elenco

Nair: Yara Trexler
Glorinha: Dália Palma
Pola Negri: Maurício Loyola
Madame Luba: Sônia Oiticica
Dr. Jubileu de Almeida: Abdias do Nascimento
Enfermeira: Léa Garcia
Médico: Roberto Batalin
Tia Odete: Sônia Oiticica
Ceci: Mara de Carlo
Cristina: Maria Amélia
Tio Raul: Nelson Rodrigues
Gilberto: Gláucio Gil
Judite: Maria de Nazareth
Mãe: Sônia Oiticica
Primeiro Irmão: Weber de Moraes
Segundo Irmão: Namir Cury

⸺ Cenário

Cláudio Moura

⸺ Diretor de cena

Sanin Cherques

⸺ Assistente de Produção

Namir Cury

Fragmentos Jornalísticos

- “Realizaremos “Perdoa-me por me traíres” com o espírito de uma revolução contra a inautenticidade e o convencionalismo do nosso teatro. Vamos apresentar personagens, situações e diálogos estruturados numa forma absolutamente brasileira, gente que fala, vive e sofre usando maneirismo e expressões genuinamente nossas.” – (Declaração do ator e produtor Gláucio Gill – “Irá à cena para nunca mais ser representada”. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jun. 1957.)

- “Meu desejo – declarou – é fazer com que os espectadores esqueçam que estão no teatro e realmente acreditem no que se estiver passando em cena. E, por isso, se existe uma cena de esbofeteamento, não há outra forma de representá-la senão com bofetadas mesmo. Se a personagem geme, fiz com que esse gemido viesse com um apelo de todo o ser, um gemido que, faço questão de dizer, jamais foi ouvido em qualquer espetáculo brasileiro.” – (Declaração do diretor Leo Jusi – “Irá à cena para nunca mais ser representada”. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jun. 1957.)

- “A história de uma colegial que se corrompe, vítima de toda uma sociedade. De alto interesse feminino, “Perdoa-me por me traíres” revela, com violenta autenticidade, o desespero de um homem que mata e morre por amor. Extraordinário valor moral.” – (“Perdoa-me por me traíres, de Nelson Rodrigues”. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jun. 1957.)

- “Nelson Rodrigues estreia assim como ator teatral, representando num original seu. (...). Esta é, sem dúvida, a maior bomba teatral do ano. Por que Nelson Rodrigues, em plena maturidade criadora, resolveu fazer tão significativa experiência, estética e vital?” – (“Bomba Teatral: - Nelson Rodrigues estreia como ator de teatro!”. Última Hora, Rio de Janeiro, 29 mar. 1957.)

- “O lançamento da “tragédia de costumes”, “Perdoa-me por me traíres” (...), é, em si mesmo, o maior acontecimento teatral do ano por muitos motivos. Mas um elemento novo veio dar uma nova dimensão ao fato: - a estreia de Nelson Rodrigues, como ator! Eis a bomba que, por certo, vai abalar os nossos meios teatrais e despertar enorme curiosidade na plateia: - Nelson Rodrigues intérprete de si mesmo, encarnando os seus próprios personagens, vivendo em pessoa as grandes e eternas paixões do ser humano!” – (“Nelson Rodrigues vai estrear como ator de teatro!”. Última Hora, Rio de Janeiro, 29 abr. 1957.)

- “A nova grande trágica da cena brasileira [Dália Palma] é esbofeteada toda noite pelo ator “estreante” Nelson Rodrigues, e sofre na carne todo o drama duma juventude que não tem licença de ser feliz, mas está contente da vida!” – (“Dália está gostando de sofrer”. Última Hora, Rio de Janeiro, 01 jun. 1957.)

- “Todos desejam saber o seguinte: por que Nelson Rodrigues só representará durante dez dias? Resposta: a peça, amigos, é violentíssima.” – (Última Hora, Rio de Janeiro, 14 jun. 1957.)

- “Quando baixou o pano no final do último ato de “Perdoa-me por me traíres”, o público que assistia (...) dividiu-se imediatamente em duas correntes exaltadas: os que aplaudiam com entusiasmo e os que vaiavam a plenos pulmões.” – (“Vaias e aplausos receberam a “rentrée” de Nelson Rodrigues”. O Globo, Rio de Janeiro, 21 jun. 1957.)

- “Foi uma estreia sem precedentes. Enquanto um grupo frenético vaiava, a maioria, não menos frenética, cobria de aplausos a peça, o autor e o elenco. E não faltou, no tumulto, a nota, a um só tempo cômica e sinistra: - o vereador Wilson Leite Passos puxou o revólver para assassinar, talvez, a obra de arte que estava sendo representada. Nunca se viu alguém tentar balear uma peça teatral.” – (“O público me aplaudiu: fui vaiado pelos zebus!”. Última Hora, Rio de Janeiro, 22 jun. 1957.)

- “A peça, como todas as outras do autor, é cheia de drama, de taras, de sexo, de complexos e de violência. Mulheres perdidas, tipos humanos decaídos, elementos degenerados e loucos desfilam no palco dos três atos (...).” – (“Vaias e aplausos receberam a “rentrée” de Nelson Rodrigues”. O Globo, Rio de Janeiro, 21 jun. 1957.)

- “Resolveu o Governador Jânio Quadros, atendendo à solicitação que lhe foi feita, em memorial, por um grupo numerosos de senhoras paulistas, cancelar a autorização concedida para a apresentação de “Perdoa-me por me traíres” (...).” – (“Censura em São Paulo”. O Globo, Rio de Janeiro, 26 out. 1957.)

- “A principal acusação dos detratores de “Perdoa-me por me traíres”, é que Nelson Rodrigues colocou no palco cenas de brutal realismo, inéditas em toda a história do teatro universal. Retrucam os defensores que se trata de uma violência necessária em face do processo de dissolução social, e, pelo contrário, as mães de família deviam assistir à peça, como o mais terrível dos exemplos!” – (“Estreia hoje “Perdoa-me por me traíres””. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 28 jun. 1957.)

- “Peça forte, sem nada esconder aos olhos do público, “Perdoa-me por me traíres” é, entretanto, altamente moralista, pois há, nela, um profundo sentido de justiça social e humana”. – (“Mensagem para a mulher - Perdoa-me por me traíres”. Última Hora, Rio de Janeiro, 24 mar. 1957)

- “Realizaremos “Perdoa-me por me traíres” com o espírito de uma revolução contra a inautenticidade e o convencionalismo do nosso teatro. Vamos apresentar personagens, situações e diálogos estruturados numa forma absolutamente brasileira, gente que fala, vive e sofre usando maneirismo e expressões genuinamente nossas.” – (Declaração do ator e produtor Gláucio Gill – “Irá à cena para nunca mais ser representada”. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jun. 1957.)

- “Meu desejo – declarou – é fazer com que os espectadores esqueçam que estão no teatro e realmente acreditem no que se estiver passando em cena. E, por isso, se existe uma cena de esbofeteamento, não há outra forma de representá-la senão com bofetadas mesmo. Se a personagem geme, fiz com que esse gemido viesse com um apelo de todo o ser, um gemido que, faço questão de dizer, jamais foi ouvido em qualquer espetáculo brasileiro.” – (Declaração do diretor Leo Jusi – “Irá à cena para nunca mais ser representada”. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jun. 1957.)

- “A história de uma colegial que se corrompe, vítima de toda uma sociedade. De alto interesse feminino, “Perdoa-me por me traíres” revela, com violenta autenticidade, o desespero de um homem que mata e morre por amor. Extraordinário valor moral.” – (“Perdoa-me por me traíres, de Nelson Rodrigues”. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jun. 1957.)

- “Nelson Rodrigues estreia assim como ator teatral, representando num original seu. (...). Esta é, sem dúvida, a maior bomba teatral do ano. Por que Nelson Rodrigues, em plena maturidade criadora, resolveu fazer tão significativa experiência, estética e vital?” – (“Bomba Teatral: - Nelson Rodrigues estreia como ator de teatro!”. Última Hora, Rio de Janeiro, 29 mar. 1957.)

- “O lançamento da “tragédia de costumes”, “Perdoa-me por me traíres” (...), é, em si mesmo, o maior acontecimento teatral do ano por muitos motivos. Mas um elemento novo veio dar uma nova dimensão ao fato: - a estreia de Nelson Rodrigues, como ator! Eis a bomba que, por certo, vai abalar os nossos meios teatrais e despertar enorme curiosidade na plateia: - Nelson Rodrigues intérprete de si mesmo, encarnando os seus próprios personagens, vivendo em pessoa as grandes e eternas paixões do ser humano!” – (“Nelson Rodrigues vai estrear como ator de teatro!”. Última Hora, Rio de Janeiro, 29 abr. 1957.)

- “A nova grande trágica da cena brasileira [Dália Palma] é esbofeteada toda noite pelo ator “estreante” Nelson Rodrigues, e sofre na carne todo o drama duma juventude que não tem licença de ser feliz, mas está contente da vida!” – (“Dália está gostando de sofrer”. Última Hora, Rio de Janeiro, 01 jun. 1957.)

- “Todos desejam saber o seguinte: por que Nelson Rodrigues só representará durante dez dias? Resposta: a peça, amigos, é violentíssima.” – (Última Hora, Rio de Janeiro, 14 jun. 1957.)

- “Quando baixou o pano no final do último ato de “Perdoa-me por me traíres”, o público que assistia (...) dividiu-se imediatamente em duas correntes exaltadas: os que aplaudiam com entusiasmo e os que vaiavam a plenos pulmões.” – (“Vaias e aplausos receberam a “rentrée” de Nelson Rodrigues”. O Globo, Rio de Janeiro, 21 jun. 1957.)

- “Foi uma estreia sem precedentes. Enquanto um grupo frenético vaiava, a maioria, não menos frenética, cobria de aplausos a peça, o autor e o elenco. E não faltou, no tumulto, a nota, a um só tempo cômica e sinistra: - o vereador Wilson Leite Passos puxou o revólver para assassinar, talvez, a obra de arte que estava sendo representada. Nunca se viu alguém tentar balear uma peça teatral.” – (“O público me aplaudiu: fui vaiado pelos zebus!”. Última Hora, Rio de Janeiro, 22 jun. 1957.)

- “A peça, como todas as outras do autor, é cheia de drama, de taras, de sexo, de complexos e de violência. Mulheres perdidas, tipos humanos decaídos, elementos degenerados e loucos desfilam no palco dos três atos (...).” – (“Vaias e aplausos receberam a “rentrée” de Nelson Rodrigues”. O Globo, Rio de Janeiro, 21 jun. 1957.)

- “Resolveu o Governador Jânio Quadros, atendendo à solicitação que lhe foi feita, em memorial, por um grupo numerosos de senhoras paulistas, cancelar a autorização concedida para a apresentação de “Perdoa-me por me traíres” (...).” – (“Censura em São Paulo”. O Globo, Rio de Janeiro, 26 out. 1957.)

- “A principal acusação dos detratores de “Perdoa-me por me traíres”, é que Nelson Rodrigues colocou no palco cenas de brutal realismo, inéditas em toda a história do teatro universal. Retrucam os defensores que se trata de uma violência necessária em face do processo de dissolução social, e, pelo contrário, as mães de família deviam assistir à peça, como o mais terrível dos exemplos!” – (“Estreia hoje “Perdoa-me por me traíres””. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 28 jun. 1957.)

- “Peça forte, sem nada esconder aos olhos do público, “Perdoa-me por me traíres” é, entretanto, altamente moralista, pois há, nela, um profundo sentido de justiça social e humana”. – (“Mensagem para a mulher - Perdoa-me por me traíres”. Última Hora, Rio de Janeiro, 24 mar. 1957)